sábado, 8 de dezembro de 2012

Entrevista publicada no "Filosofia do Direito: Estudos em Homenagem a WSGF


Entrevista com o professor Dr. WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO

Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Livre-docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará. Doutor em Ciência do Direito pela Universität Bielefeld, Alemanha. Doutor e Pós-doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor nos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP -, onde coordena o Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos, e também do Curso de Mestrado em Direito da Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro – UCAM. Pesquisador das Universidades Paulista (UNIP) e Presbiteriana Mackenzie.

Paola Cantarini –. Em seu mais novo artigo “Primórdios e Atualidade da Luta pela Constitucionalização no Brasil: Considerações filosóficas no Bicentenário da Constituição de Cádiz”, o professor ressalta o papel do filósofo, na interpretação do direito. Poderia explicar melhor tal relação com a frase, que consta do trabalho  “no tempo histórico, futuro é passado”.
WSGF – Esta frase é de Kosseleck, professor da universidade de Bielefeld, ainda na época em que fiz meu doutoramento lá. Ele era uma das estrelas, das maiores, só não era maior do que o Luhmann, e antes deles, o Norbert Elias. Bem, como acho que você sabe, deles a minha ligação era com o Luhmann; a frase referida, como o pensamento do autor, é de proveniência heideggeriana; significa que em geral só vivemos o que tínhamos como possível de ser vivido. Logo, ela revela a nossa triste condição de eternamente reviver o passado – mas essa tristeza precisa ser transformada em um sentimento que nos eleve, ao invés de abater, pelo que Friedrich Nietzsche chama de amor fati, e justamente diante desse que considera o maior pensamento que o acometeu, o do eterno retorno do mesmo.
Paola Cantarini – Por que? Não entendi o reviver o passado, assim como também não entendo, e gostaria de entender, essa ideia do Nietzsche, esse tipo de amor, ao fado, ao destino...
WSGF – É como o direito que pretende regular o futuro, o que vai acontecer. E ele faz isso como? A partir do que já aconteceu, do passado; essa para mim, no momento é a principal questão da filosofia do direito. Eu cunhei neste artigo a que você se refere, para nominar esta ação do direito, o verbo retroprojetar, ou seja, projetar no futuro o passado, o que está atrás, retro. Portanto, não tem nada a ver com este simpático aparelho em vias de extinção, o retroprojetor (rsrsrsr). E o amor fati é uma ideia com uma clara descendência estoica, reproposta no contexto do pensamento nietzscheano por alguém que, é preciso lembrar, sofreu muito, física e afetivamente, e que mesmo assim identificava no dionisíaco o sentido da vida.
Paola Cantarini – Depois queria voltar a esse ponto, mas agora não, mais para o final. Então, no mesmo artigo, o professor ressalta a relação do direito e o tempo. Poderia melhor explicitar tal relação, de acordo com sua perspectiva e se teve influência da obra Sein und Zeit, de Martin Heidegger.
WSGF – Sim, claro, porém, Heidegger é um autor-chave, para mim, para o Foucault, como ele mesmo diz em uma de suas entrevistas, para toda a chamada filosofia continental contemporânea, a que não é analítica, pois esta se referencia em Wittgenstein – que tem Frege antes dele, assim como Heidegger tem Husserl, não esqueçamos. Mas neste artigo de que vc. fala, dentre outras coisas, e num lugar, talvez inapropriado, ou, no mínimo, inusitado - por não ser um texto que tenha nascido da filosofia, mas que eu o criei como se tivesse –, enfim, nele procuro mostrar o quanto Heidegger deve a Kant, o da primeira edição da crítica da razão pura, o que colocou a imaginação como a faculdade primordial, anterior e superior à própria razão.
Paola Cantarini – A passagem é a seguinte:
(...) Mas agora nos interessa realizar uma reflexão jusfilosófica, que nos leve adiante na compreensão do que seria o seu tema central, isto é, o modo de ser do Direito. E nesse sentido fica patenteada a relação ontológica que ele guarda com o tempo, donde se poder verificar o quanto o ser do direito, tal como o ser em geral é (no) tempo, uma perspectiva que foi consagrada na – e consagrou a – obra Sein und Zeit, de Martin Heidegger, publicada em 1927, causando grande impacto, embora assista em nosso modo de ver toda razão a este mesmo A., quando em obra publicada no ano seguinte, Kant e o Problema da Metafísica, credita a Kant – ainda que para kantianos de estrita observância numa jogada de criação retrospectiva das condições para legitimar o seu próprio pensamento – o mérito maior por esta descoberta filosófica. (...)”
WSGF – Sim, é isso – dá vontade de continuar falando do que vem na sequência, mas o texto está aí para quem quiser conferir, não? Aliás, está destinado a uma coletânea que organiza meu Mestre e amigo Paulo Bonavides, mas está às ordens de vcs. para divulgá-lo por aqui, pois tem lá colocações que eu gostaria de ver em discussão o quanto antes, as que são pertinentes à nossa atualidade e, mais especificamente, a “Comissão da Verdade”.
Paola Cantarini – Segundo o professor, em outros textos, como a tese de filosofia defendida no final do ano passado no IFCS-UFRJ e também naqueles de psicanálise, tal como os entendi, o Direito seria criado para justificar nosso desejo de nos preservar a vida, a nossa e a dos outros sem que saibamos porquê. Essa é nossa herança, o legado que recebemos e repassamos, a nossa Lei: a letra que somos, que nos obriga e liberta, sendo, por ambos os motivos, e em seu duplo sentido, de se comemorar. Por nos obrigar a libertar, de que? Estranha essa ideia de uma obrigação de ser livre; e é de se comemorar em que sentido?
WSGF – O desejo é regulado pelo direito, mas, a regra é que produz o desejo, então, sem regra, não há desejo, a regra existe para criar o desejo. O desejo é a verdade da regra, a regra é o desejo externalizado. E exatamente é uma confirmação do que eu disse antes, a propósito do Nietzsche, do amor fati, pois é o que nos torna humanos, essa regra ou Lei, que barrando os instintos nos liberta deles, produzindo o desejo em seu lugar. Só que, para continuarmos com Nietzsche, não podemos nos acomodar em sermos apenas “humanos, demasiado humanos”, temos de ir além, em direção ao que está além, mas aqui, não no além, sendo o que ele chama de Ubermensch, “super-homem”, que melhor se traduzirá por “além-do-homem”, pois o desejo é infinito e sem objeto pré-determinado, está para além de toda determinação e condicionamento, é a liberdade, e se nós o fixarmos, estagnamos, apodrecemos, morremos, ainda em vida – são os “sepulcros caiados”, de que falava Jesus Cristo, a propósito dos fariseus, dos que viviam para a Lei, e não pela Lei, como muitos de nós, cristãos, ateus ou de outras crenças.
Paola Cantarini – E o sonho? Também seria superior ao que vivemos acordado? Acho que Nietzsche diria que sim. Poderia explicar o entendimento do professor, de que vivemos um direito sonâmbulo, da natureza da ordem do desejo, função do desejo (e não da vontade ou da necessidade, do utilitarismo), possuindo o mesmo estatuto dos sonhos, isto é, um caráter onírico; há relação com a “poética dos sonhos (rêverie)” de Bachelard, para quem: “Um mundo se forma em nossos sonhos, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo sonhado nos ensina possibilidades de crescimento de nosso ser nesse universo que é nosso”? Assim, o sonhar também permitiria ter experiências sem limites, nos ensina a liberdade, é isso?
WSGF – Sim, e eu sou mesmo muito influenciado pelo Bachelard, como aliás muita gente, sem que dê margem a que se perceba, e aí talvez eu mesmo me inclua, mas é que talvez também essa seja uma característica de obras como a dele, de reviver ou reacordar em nós o que lá já estava, adormecido, e daí temos como nosso mesmo. Eu adoro ele há muito tempo, mas a primeira frase que você cita é de outro que também curto há muito tempo, o Oswald de Andrade, está no Manifesto Antropófago, de 1922. O resto é meu, eu assumo, e espero que com a resposta dada à questão anterior possa ter ficado mais claro, sem também querer esclarecer demais, pois uma certa obscuridade é o que favorece o sono e o sonho, a interpretação de cada um. Eu diria que sua pergunt já dá pistas suficientes para uma resposta também suficiente.
Paola Cantarini – Gostaria então que o professor comentasse a frase de Foucault concluindo seu livro “O governo de si e dos outros”, objeto de seu curso de filosofia do direito este semestre no mestrado da PUC-SP: “A parresía filosófica que joga nesse diálogo entre o mestre e o discípulo, conduz não a uma retórica, mas a uma erótica”. (“O governo de si e dos outros”. São Paulo: Editora Martins Fontes. 2ª. ed., 2011).
No mesmo sentido: “(...) o erotismo, é, na realidade, um mundo com existência própria”. (“Reflexões sobre o problema do amor e o erotismo. Lou Andreas- Salomé, São Paulo: Landy. 2005, Contracapa)
E tem ainda, me permitindo uma referência mais forte, “a chama da filosofia se acenderá sempre na chama do esperma e nos templos ela não será apagada, ainda que mil seres supremos se agitem para lhe sufocar a centelha”. (Marquês de Sade,citado em “Sade contra o ser supremo”, Philippe Sollers. Tradução Luciano Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade, 2001).
WSGF – Sim, claro, porque não – já o Platão dizia algo semelhante, na Carta VII, sobre a necessidade da fricção entre as almas para produzir a chama do conhecimento, e uma alma não pode se friccionar com outra se não for pelo corpo, pois ele está falado do que ocorreria aqui no plano das almas encarnadas (rsrsrs). Bem, no erotismo é como no sonho – lembro que ainda estamos no universo nietzscheano, pois a autora que vc. menciona, como sabemos, foi um grande amor dele, para quem teria escrito o “Assim falou Zarathustra”, pelo menos a primeira versão, depois ele acrescentou uma outra parte, menos poética e mais filosófica. Eu citaria o Bataille para fazer uma ponte entre o Foucault e os já chamados de divinos Platão e o Marquês, ao associar o erotismo com o sagrado, já que o chamado”último Foucault”, o da época a que vc. se refere, para surpresa de seus seguidores, mostrou-se mais espiritualizado, talvez pelo enfrentamento da doença mortal que o acometia; o Marquês era um naturalista, assim como talvez também o fosse Platão, o da “doutrina esotérica”, transmitida só no contato pessoal, com seus discípulos,tal como Aristóteles, que seria, assim, mais seguidor de seu Mstre do que a tradição nos fez – e faz - acreditar.
Paola Cantarini –  O Sade tem mais jeito de ser um anarquista...
WSGF – Sim, um anarquista e um naturalista, antisocial.
Paola Cantarini – No entendimento do professor haveria, talvez, uma relação entre a parresía e a literatura; e entre a parresía e o pensamento de Nietzsche?
WSGF – O parresiasta, aquele que se utiliza da parresía, é no entender de Foucault “o homem verídico, isto é aquele que tem a coragem de arriscar o dizer-a-verdade num pacto consigo mesmo”, podendo sim ser associado tal conceito à veridicidade nietzschiana, que seria uma certa maneira de fazer agir essa noção, cuja origem remota se encontra na noção de parresía como risco para quem a enuncia. Logo, tem sim relação com Nietzsche, que, de resto, é um – quase o - autor que Foucault reivindica como seu avatar. Lembremos que Nietzsche proclamava a necessidade da aventura, de correr riscos, para se obter um aprendizado que de outro modo não conseguimos, confortavelmente instalados em nossas cadeiras ou poltronas de estudo.
Paola Cantarini – Gostaria então que o professor explicasse melhor o conceito da expressão abaixo, que aparece no seu comentário sobre o Manifesto Antropófago - de qual tabu se trata e de qual transformação?
É o tempo mítico, conceituado por Lévi-Strauss, em sua antropologia estrutural, como abrangente do passado, presente e futuro... ‘Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem’”.
WSGF – É mais uma citação do manifesto nonagenário, correlacionando com o Lévi-Strauss, que em seu clássico “Estruturas Elementares do Parentesco” disse ser a lei que proíbe o incesto, sobretudo com a mãe, a primeira norma, verdadeiramente universal, a que se encontra em qualquer sociedade humana, sendo por isso a que é, a um só tempo, social e natural. Claro que isso tem a ver com o Freud, a quem o Oswald está citando, que muito antes e de outra perspectiva, informado por uma antropologia mais antiga, em sua obra “Totem e Tabu”, para explicar a universalidade do complexo de Édipo, afirmara algo muito próximo do que dirá Lévi-Strauss e, antes do próprio Freud, um outro autor, muito apreciado por Oswald, e também pelo Nietzsche, um jurista alemão do século XIX, Bachofen, o autor de “Mutterrecht”, “Direito Materno”, em que  postula a origem matriarcal da sociedade, bem na linha do que dirá depois o Freud naquele livro. Enfim, o que é proibido, como tabu, e louvado, idolatrado, como totem, “tampona” a origem de nosso desejo, a nossa origem, de seres anti-naturais, sociais portanto, sim, mas por conveniência e convenção.
Paola Cantarini – Para o professor qual seria o desejo de direito e de vida que temos? Entende ser a felicidade, assim como o era para Oswald de Andrade,quando proclama, também no Manifesto  “A alegria é a prova dos nove”? Não poderia ser o amor?
WSGF – É, se for um amor alegre – nada de paixões tristes, como diria Spinoza. “Amor, humor” – essa eu já não lembro se é do Oswald ou da montagem do Manifesto Antropófago pelo Teatro Oficina, da qual participei, pelo menos da versão que foi para a FLIP do ano passado...
Paola Cantarini – Quando o professor alude a uma das finalidades do ensino voltado às artes, ao teatro, ao possibilitar o contato da dor, ódio, a fusão cósmica de corpos, sensações, também todos estes contatos, trocas e buscas podem se dar fora da sala de aula, fora do teatro, em especial nos relacionamentos humanos, na relação homem e mulher, onde apesar do trabalho profissional se enquadrar em tal perspectiva “perfeita”, não se verifica o mesmo interesse em se buscar o mesmo no resto da vida, com os demais relacionamentos?
WSGF – Na verdade, a ideia é reduzir mesmo essa distância entre a sala de aula e a vida lá fora, trazer a vida para dentro da sala de aula, e transformar as aulas em lições de vida – mesmo, ou porque não dizer, sobretudo, em se tratando de aulas de direito, ou, pelo menos, de filosofia do direito, pois eu sei que se forem de direito administrativo fica mais difícil, mas por que não? (rsrsrs) Teria de tentar, para que o direito fique a serviço da vida, boa, a que se pode ter depois de avançar no aprendizado sobre o próprio desejo.
Paola Cantarini – No “Manifesto” escrito com seu amigo e grande filósofo do direito, lamentavelmente falecido, Luis Alberto Warat, os professores fazem forte e direta crítica ao autoritarismo no ensino e sua estrutura formal, dominada pelo capitalismo, afetando à liberdade de cátedra, de estudo, e criando obstáculos ao alcance do verdadeiro conhecimento, fazendo menção ao ensino encontrado em diversas fontes, como nas ruas, nas comunidades, e no teatro – citam o Oficina, e também um cineasta que não é conhecido -, voltado a “uma vivência mais real, mais forte, como vivência mesmo”. Como superar o sistema capitalista que continua vigente, ainda mais por ser um sintoma global? Como humanizá-lo? É a proposta de dois outros amigos seus, os professores Ricardo Sayeg e Wagner Balera, que me parece conta com seu apoio...
WSGF – Bem, são muitas perguntas em uma só. Começando pelo Manifesto que escrevi com o meu fraternal amigo Luis Alberto Warat, alguém que politicamente estava muito próximo do anarquismo, inclusive de maneira cada vez mais assumida por aquela época  em que escrevemos o texto – que vem de ser publicado em livro lançado no corrente mês de maio, em Fortaleza, comemorativo da primeira década de existência do curso de direito da Faculdade Christus. O cineasta a que vc. se refere era um dos artista que por aqueles dias circulavam em torno dele, dos que estavam querendo levar para o Rio a proposta do Cabaret Macunaíma, incluindo filmagens. Era – ou é - um baiano, apesar do sobrenome cearense, o Luis Alencar, que propunha um cinema radical e lembro que na época desenvolvia algo abordando o tema da zoofilia – o Warat se encantou com o rapaz, que tinha uma verve glauberrochiana. Não sei o que foi feito dele, se realizou o projeto, mas as experiências requeridas parece que ele já estava fazendo (rsrsrs). E isso pode ser relacionado ao capitalismo, com a concepção antropológica que lhe é subjacente, do homem como um ser de interesses gerados por necessidades, tal como os animais, donde a necessidade de humanizá-lo, o que tanto pode ser visto de maneira mais reformista, numa perspectiva cristã, católica – lembremos que a ideia de “ecclesia semper reformanda est”, depois do Concílio Vaticano II, passou também para a igreja romana -, como é aquela dos igualmente fraternais amigos paulistas que propuseram o Capitalismo Humanista, e daí o que se busca é a compatibilização dos conflitos, digamos principiológicos, no campo do direito econômico, em face dos direitos humanos, ou de maneira antes revolucionária, como seria mais a linha do falecido pensador do direito argentino, naturalizado brasileiro, pela qual humanizar o capitalismo significa acabar com ele. De algum modo, vejo isso de uma maneira circular, em que os extremos do espectro ideológico se tocam.
Paola Cantarini – As novas bases de sustentação da sociedade, a fim de que esta se mantenha íntegra, então, precisariam mesmo de alguma forma de ideologia seja a mitologia, a religião ou mesmo, mundividências filosóficas, reafirmando ou invertendo valores, ao invés de criar algum novo valor, para que este produza a afirmação de outros valores, em um círculo que não seria vicioso, mas virtuoso, é isso?
WSGF – Sim, vc. pegou bem o “espírito da coisa”.
Paola Cantarini – O poema de Charles Baudelaire abaixo põem também em relação opostos – a paixão, até o estupro, e o fato da alma nada arriscar na vida:
“se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada
não bordaram ainda como desenhos finos
a trama vã de nossos míseros destinos
é que nossa alma arriscou pouco ou quase nada”.
O poema acima fala da relação entre paixão e estupro, do sofrimento como condição para o desfrute dos prazeres, haveria alguma relação quanto à sua colocação em texto de seu livro Conceitos de Filosofia, o que fala em “....medo da morte, medo da vida, medo de transformação...¨, ao final, na última frase: ¨Tempo, morte, desejo: gozo”.
WSGF – Bem, esse texto foi escrito para uma apresentação em Florianópolis, a convite do Warat, em um evento do que ele propunha à época, princípio dos anos 1990, como sendo uma “cinesofia”. Então, a gente discutia filosoficamente filmes. E normalmente a discussão se dava depois da exibição do filme, como hoje em dia se faz muito e tal. Só que eu escrevi aquele texto, “Tempo e Morte”, e li antes da apresentação do filme, que então seria visto da perspectiva proposta no texto, então os dois, texto e filme, formariam uma unidade de sentido, explicando-se mutuamente. Daí que a melhor explicação para o que consta no texto encontra-se no filme, “El Matador”, do Almodovar – vc. viu?
Paola Cantarini – Não lembro.
WSGF – É o do toureiro, manco e assassino, em que na cena final ele e a advogada dele terminam fazendo sexo, gozando e se matando...
Paola Cantarini – Vou procurar p´rá ver, claro. Mas o professor hoje em dia está mais para o teatro do que para o cinema, não? Por que a proposta de teatraulas e não outras formas imaginárias, lúdicas, como a própria linguagem escrita ou outras formas de arte – pintura, escultura, música, dança?
WSGF – Bem, as teatraulas que temos feito, dirigidas pelo Francisco Carlos, envolvem outras formas de arte, sobretudo a música, como também deverão se aprimorar no aspecto cenográfico, agora que estamos contando com o patrocínio, que esperamos seja duradouro e consistente, do banco Santander – para o dia 23 de agosto está marcada a apresentação no Tucarena, com esse patrocínio, da “trilogia tebana”. Penso que por meio do teatro se pode vivenciar mais, em seu mundo artisticamente criado, do que na vida concreta, nos preparando melhor para ele, ao criar situações de possibilidades abertas, criando assim a sensação de poder realizar a constante transmutação que é inerente à vida, de que falo naquele artigo que comentamos na última pergunta, e em outros, posteriores, especificamente sobre as teatraulas, ou sobre o Kafka, pois foi trabalhando dramaturgicamente textos dele que comecei com a atriz que faz comigo as teatraulas, a Fabianna Serroni, essa pesquisa com o teatro, a performance.
Paola Cantarini – Sim, e lembro que no texto sobre o Kafka está dito que o conhecimento só começa quando se deseja a morte, ou, o que seria o mesmo, no desejo de mudar de vida, de “cela” - que é também desejo de se pôr a caminho, de ser transportado, aventurar-se, isto é, consoante Kafka, o que seria representado pela cavalgada, em textos como “Desejo de virar Índio”. Então, que diferença faz o método de ensino, se não se teve já essa experiência?
WSGF – Realmente, do que se trata é de provocar essa experiência, da qual nos afastamos cada vez mais, quando mais entramos por esse caminho da virtualização, da descorporificação, desmaterialização, que é o da sociedade atual, então a ideia central da teatraula, como também das oficinas de teatro, filosofia e literatura, a partir dos textos do Kafka, é corporificar e materializar o conhecimento, o que me parece a grande contribuição que uma sala de aula ainda pode trazer, e só algo assim pode trazer, nesses tempos de informações disponíveis de forma massiva para quem se concetar na rede mundial de computadores.
Paola Cantarini – Não seria mais um problema o retrocesso à animalidade, recuperando a sensibilidade, contrapondo-se ao que no texto sobre Kafka, também, é referido como a “alienação do próprio corpo, por força das ideias, em que tendemos cada vez mais a nos tornarmos, deixando de ser reais, animais”, pois isso não implica no fato de que além da sensibilidade as demais características do retorno ao animal seriam incorporados, a ausência de limites, de moral?
WSGF – Na verdade, o que proponho é que encontremos nosso lugar, como humanos, “entre o animal e o ideal”, quer dizer, que evitemos tanto o rebaixamento à animalização, como também desconectarmo-nos da “base física do espírito”, como consta do título de um livro de meu conterrâneo cearense e grande filósofo, Farias Brito, ou seja, alienarmo-nos em uma idealização, que tanto pode ser uma religião ou mesmo a ciência, e isso nos impeça de viver da melhor forma essa dificuldade, esse desafio, de horror e maravilha, que é sermos humanos.
Paola Cantarini – A causa de tanto desconforto, que seria a vida desenraizada que levamos, e a busca pelo eterno gozar, para completar o vazio, o que nos falta e nos escapa, não poderia ser justamente o que se nega com o apelo ao dionisíaco (já que completamente dominado pelo deus, ficas-se alheio, indiferente aos outros, cedendo lugar aos impulsos do irracional)? O individualismo, que é negado tão fortemente pelo dionisíaco, pelo projeto de teatraula, não carrega em si mesmo um forte conteúdo individualista? Não é o que se pode concluir do trecho abaixo:
“(..) A epifania de Dioniso não escapa apenas da limitação das formas, dos contornos visíveis. Ela se traduz por uma magia, uma maya que perturba as aparências. (...) ultrapassagem de todas as formas, jogo de aparências, confusão entre o ilusório e o real, a alteridade de Dioniso depende também do fato de através de sua epifania, todas as categorias ressaltadas, todas as oposições nítidas, que dão coerência à nossa visão de mundo, em vez de permanecerem distintas e exclusivas, se chamarem, se fundirem, passarem umas às outras.(..) quando o bando das Mênades entrega-se em conjunto ao frenesi orgiástico, cada participante agita-se por sua conta, sem preocupação com uma coreografia geral , indiferente ao que os outros fazem (...). Assim que o fiel entra na dança ele se encontra, como eleito, a sós com o deus, completamente submisso á potência que o possui e o conduz à vontade” (“Ainda sobre Dioniso”, in: Mito e Tragédia na Grécia Antiga. Jean Pierre Vernant e Pierre Vidal Naquest. São Paulo: Perspectiva,1995, p. 343).
WSGF – Bem, na teatraula ainda não rompemos com a separação entre público-espectador e apresentadores, embora dela faça parte o momento final, em que a assistência é convidada a se manifestar. Lá, ao mesmo tempo, nos interessa posicionarmos como retransmissores de uma tradição que se inicia no culto ao Dioniso, em um ato a um só tempo político, educacional e também religioso, além de artístico, claro, como eram as tragédias na Grégia antiga, em Atenas. Mas é muito difícil falar da teatraula, pois ela é antes de tudo uma experiência para se vivenciar, sendo o que recomendo a vc. e demais interessados em compreender a proposta.
Paola Cantarini – Levando-se em conta Platão, em O banquete, poder-se-ia dizer, então, que não seria o teatro, mas sim o banquete, o ato de comer em comunhão, o lugar ideal para o conhecimento e aprendizado? E a primeira aula, retomando aquela proposta do Freud, não teria sido o “banquete totêmico”, conforme o que é referido nos textos abaixo, sendo o primeiro de sua autoria?
Após o assassinato do (Deus-)Pai seu corpo teria sido partilhado por todos, havendo neste ato de “comer juntos”, de comunhão, mais do que um sentido de incorporação do poder e de recolhimento em si do morto, a finalidade de instituição da comunidade, de uma “comum-unidade”.
 “É na mesa e na festa, bem mais do que em estruturas abstratas de troca ou circulação, que se opera a passagem da natureza e da cultura. Dionísio se apresenta como o grande mediador” (“À sombra de Dionísio. Contribuição a uma sociologia da orgia”. Michel Maffesoli, tradução Aluizio Ramos. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p.10)
WSGF – Bom, Platão, em seu último Diálogo, “As Leis”, voltado para o direito, como o título indica, recomenda expressamente que o banquete, cuja palavra em grego que o denomina é symposion, seja o lugar em que se deveria transmitir de maneira ideal, o conhecimento – algo bem diferente de nossos atuais “simpósios”, portanto (rsrsrs). E o que o Maffesoli está dizendo nos indica que nossa época está propicia a uma retomada dessa forma d aprendizado, sendo mesmo o que hoje se tem feito, ainda que não seja com o intuito de obter conhecimento, mas sim, diversão – é preciso acabarmos, urgentemente, com essa  dissociação entre divertimento, prazer e estudo, aprendizado, de outro, sendo nesse sentido que propomos as teatraulas.
Paola Cantarini – Bem, professor, nossa entrevista já atingiu o tamanho previsto e me parece que essa resposta fica bem para ser a última. Quero agradecer e encerrar prestando uma pequena homenagem. Lendo um poema do professor chamado “Poeta louco”, no livro que está disponível no sítio Jornal de Poesia, ele me fez lembrar de algumas passagens de Nietzsche, às quais coletei e deixo aqui, digamos, de presente, dessa sua aluna e orientanda, que muito o admira.
WSGF – Puxa, muito obrigado, Paola.
“NUR NARR! NUR DICHTER! Somente Louco! Somente poeta!
¨(...) portanto, aquilinos, de pantera
São os anseios do poeta,
São teus anseios sob milhares de disfarces,
Ó louco! Ó poeta!
Tu, que olhaste o homem
Como deus e como carneiro –
Dilacerar o deus no homem
Como o carneiro no homem
E rir dilacerando –
Isso, isso é a tua ventura,
Ventura de uma pantera e águia,
Ventura de um poeta e louco!...
 (...) “- lembra-te ainda, lembras-te ardente coração,
Como tinhas sede então –
Que eu seja banido de toda a verdade!
Somente louco!somente poeta!...”
“...não esqueças,
ó homem totalmente curtido pela volúpia: tu és – a pedra, o deserto , és a morte..”
entre as aves de rapina
...mas tu Zaratustra amas ainda o abismo,
Fazes como o abeto –
Ele finca raízes
Onde o próprio penhasco
Treme ao olhar a profundeza,
Ele hesita à beira de abismos
Onde tudo em volta
Quer precipitar-se...
...É preciso ter asas quando se ama o abismo..
(....) -“quem me aquece, quem me ama ainda
Dai-me mãos quentes!
Dai-me braseiros para o coração!
Estendida, arrepiada,...
Sacudida ai!por febres desconhecidas,
Tremendo ante setas agudas e gélidas,
...assim me acho deitada,
Torço-me, retorço-me, atormentada
Por todos os martírios eternos,
Golpeada por ti, caçador crudelíssimo,
Tu – deus desconhecido..
Golpeia mais fundo!
Golpeia mais uma vez!
Traspassa, traspassa este coração!
 ...Tu me pressionas, me oprimes, ah!já perto e mais!ouves-me respirar, espreitas meu coração, ó ciumento! Mas ciumento de que..... tua mais orgulhosa prisioneira...
Ladrão por trás das nuvens...
Fala, enfim..
Oculto no relâmpago! Fala! Que queres tu, salteador, de – mim..
... A mim – queres
A mim
A mim – toda...
Não é preciso antes se odiar, para se amar...
Eu sou teu LABIRINTO...”


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