quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Direito poético (em Kafka, Antígona e no Manifesto Antropófago)


Direito poético
(em Kafka, Antígona e no Manifesto Antropófago)
Willis Santiago Guerra Filho
Professor Titular do Centro de Ciências Jurídicas e Políticas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e da Faculdade Farias Brito (Fortaleza, Ce). Professor dos Programas de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Universidade Candido Mendes (UCAM-RJ).

I
O direito é visto, geralmente, como um mero instrumento técnico, de controle do comportamento, da conduta humana, sem concebê-lo também como tendo o ônus de se justificar, de fundamentar o que apresenta como válido, para além da simples referência a normas postas, porque é uma visão tecnicista do direito a que predomina É preciso, então, implicar mais o sujeito encarregado da interpretação e aplicação das normas nesse processo, com sua vivência do drama que tem diante de si. A orientação que hoje, pelo direito, se fornece, para a conduta, em sociedades como a nossa, fundamenta-se no simples fato de se fazer normas supostamente obedecendo a outras normas, que já existem. Isso na medida em que nós numa sociedade como a nossa, de uma maneira digamos assim, bastante extraordinária na história da humanidade, não temos mais um vínculo estabelecido entre nós a partir de algo como a religião, tal como em geral tem se observado ao longo da história, no passado, e ainda hoje no presente, em sociedades ainda existentes e que se organizam de um determinado modo, que justamente não é o modo das sociedades como aquelas marcadas pela civilização ocidental do atual momento de sua história, em que se verificou a ruptura do vínculo tradicional entre o direito e uma esfera transcendente que o justifique. Esta esfera justificadora, por definição, há de ser transcendente, estar além (ou aquém) do que por ela se justifica, e neste sentido, logo pensamos, ser também de uma natureza religiosa, mas que pode não sê-lo. Tanto é assim que, por exemplo, no nosso passado, ou no passado desta civilização dita ocidental, o mais recuado, no seu passado greco-romano, esta instância transcendente foi a política, propriamente dita, enquanto a crença na superioridade da cidade, de cidades inicialmente gregas e, depois,  Roma; e na outra vertente, formadora desta civilização, na vertente judaico-cristã, a justificativa estava na transcendência, aí sim, da própria divindade: monoteísta, única, do Deus único, criador do universo, do homem e, portanto, das suas leis fundamentais também expressas muito bem no decálogo, nas dez normas dos dez mandamentos, dos decalogoi (δεκάλογοι), dos dez ditos transmitidos na tradição judaica através de Moisés e supostamente enviados por Deus. Então é curioso que nós terminamos produzindo na Modernidade a ruptura destes vínculos do direito com qualquer forma de transcendência, seja em termos estritamente religiosos ou em termos teológico-políticos. O direito está, digamos assim, tendo que se impor pelas suas próprias razões e a gente não pode considerar satisfatório que a estas razões não se acrescente alguma forma de convicção emanada daquilo que nós entendemos se precisa prestar mais atenção atualmente, que é o próprio sentimento ou a sensibilidade dos que estarão sujeitos a estas ordenações, para que estas ordenações não sejam percebida e, de fato, implementadas de uma maneira que desconsidera a dignidade própria destes sujeitos. E é aí que entendo tenhamos que desenvolver uma abordagem poética do direito.
A Poética é uma disciplina filosófica que remonta a Aristóteles, em seu Tratado da Poética, portanto deste que é um dos autores do cânone filosófico padrão do pensamento ocidental, sendo que desta obra o que restou foi sobretudo a teorização sobre a tragédia. Penso que aí nós temos realmente uma chave para ser utilizada também para reavaliar o pensamento teórico, como um todo e, claro, igualmente do campo do direito, considerando aquela faculdade um tanto quanto desprezada tradicionalmente, que é a faculdade da imaginação. E em sendo, portanto, o direito tido como uma criação, tal como é próprio da nossa tradição, ou desta tradição que se tornou mundial, a tradição ocidental, naquilo que ela remonta também a sua outra vertente, além da grega ou greco-romana, que é a vertente judaico-cristã, aí nós temos a possibilidade justamente de uma concepção “creacional” do direito, do direito como um produto de uma criação que, se num primeiro momento, é tido como de origem divina, atualmente, ou, ao longo de um processo histórico, cortou ou perdeu este vínculo com esta origem, assentando-se no próprio homem a fonte criadora, produtora do direito. Ora, então o direito é “poiético” (em grego, poiesis, produção inovadora, por oposição complementar a techné, a técnica, pela qual no máximo se aperfeiçoa o que já está dado) e, com o aumento da complexidade, tanto sua como também, correlativa e mutuamente, do meio social em que se insere, diria meu saudoso mestre dos estudos de doutorado na Alemanha, em Bielefeld, Niklas Luhmann, torna-se “autopoiético”. Ele se nos aparece, assim, como o resultado do emprego de um saber e de um poder de criação do homem e, não apenas de mera reprodução, como seria o saber da mera práxis, da técnica e da prática. Então é uma técnica-poética, diríamos, em termos gregos (téchné poietiké). Porque nós sabemos que, infelizmente, em Roma a técnica e a arte se confundiram e se misturaram, inclusive numa palavra única que é ars, “arte”, e o direito terminou sendo associado mais ao aspecto técnico como ainda hoje o é, e menos a este aspecto, que eu diria ser o aspecto original, e aqui podemos reivindicar Vico, Giambatista Vico como um dos pensadores que são tutelares, que são afiançadores desta idéia, quando remete à obra de legisladores, inspirados como artistas, a produção do direito em suas origens mitológicas. Ora, o que é um mito senão uma criação artística com este conteúdo, com esta conotação também religiosa, sobretudo a partir de um certo momento, com a influência maior da escrita – eu sou dos que privilegia a etimologia da palavra religio proposta por Cícero, de relegere, ou seja, reler, observando criteriosamente, doutrina previamente estabelecida por escrito. Então, considero que é preciso pensar o direito novamente, eu diria, dessa maneira em que ele se associa a estes elementos essencialmente humanos, que são os elementos de ordem poética, ficcional, mítico, religioso, todos eles presentes na encenação teatral. Daí que me interessa ampliar a comrpreensão do direito indexando-o direito à literatura, ao teatro e filosofia, a partir de leituras dirigidas dramaturgicamente de obras de Kafka, como também da tragédia Antígona, do que se apresenta uma amostra a seguir.
II
Em se tratando da produção literária de Kafka, estamos diante de obra que como poucas vem se prestando a tantas interpretações, e das mais diversas conotações, além daquela estritamente literária: religiosa, política, psicanalítica, jurídica, filosófica etc. Isso pode ser explicado, como o faz Gershom Scholem,[1] pelo enraizamento profundo de Kafka na tradição do misticismo judaico, o qual, sem negar o significado transmitido pelas autoridades, procura revelar novas e infindáveis camadas de significação da palavra escrita em nome do Infinito.
Dentre esses textos, merecem destaque os textos-curtos, as Erzählungen, como aquelas antes referidas, muitas com apenas um pequeno parágrafo - como é o caso da maravilhosa “Desejo de virar Índio” (“Wunsch, Indianer zu werden”) -,[2]  mas de grande densidade cognitiva e, também, teatralidade, tanto que o consagrado filósofo e crítico literário, Walter Benjamim - um dos primeiros a reconhecer o valor dessa obra, juntamente com seu amigo há pouco referido, Gershom Scholem -, os denominou de “contos de fada” (Märchen) para cabeças dialéticas. E nesse mesmo texto, publicado por ocasião da primeira década de falecimento de Kafka, Benjamin anota que toda sua obra “representa um código de gestos, cuja significação não é de modo algum evidente, desde o início, para o próprio autor; eles só recebem essa significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências”. De fato, a fortuna crítica posterior identificou no teatro iídiche, que Kafka tanto admirava, a origem dos gestos e posturas que retrata em sua obra: gestos curtos, enfáticos e reiterativos, o canto monótono, os ruídos súbitos, a situação do ator em relação à platéia, esforçando-se para ser aceito e prestigiado, por exemplo. No texto da palestra que proferiu sobre o teatro iídiche, Kafka deixou registrado o que tanto o atraia nele, além do simples fato de ser como um templo da arte judaica, ao qual ele queria se devotar: lá havia “tudo reunido, drama, tragédia, canto, comédia, dança tudo junto, (em suma) a vida!” (no original: alles beisammen, Drama, Tragödie, Gesang, Komödie, Tanz alles beisammen, das Leben!”). Em uma anotação de 25 de dezembro de 1911, referida tanto por Deleuze e Guattari no livro que escreveram sobre Kafka, como, entre nós, por Enrique Mandelbaum,[3]  nosso A. detalha as vantagens que o contato com o teatro iídiche e a literatura judaica o teriam mostrado no trabalho literário, incluindo a possibilidade de debater a oposição entre pais e filhos, como fará de maneira explícita na “Carta ao Pai”, que o especialista por último referido considera “um dos documentos mais importantes do século XX” (ib., p. 151), destacando passagens em que a queixa contra o pai se centra em sua falha na transmissão de orientações seguras, com base na tradição cultural em que se inserem – no caso, aquela judaica.
Daí ser o sentido um dos temas centrais de sua obra, ou melhor, a perda dele, do sentido de nossas vidas, na vida moderna, com a perda das crenças tradicionalmente estabelecidas, e a nossa inútil busca de encontrá-lo, recuperando essa crença. Donde decorre o aspecto religioso que se encontra nos escritos de Kafka, e que seu primeiro editor, o melhor amigo, Max Brod, tanto enfatizava, por ser ele próprio um crente, enquanto Kafka, ao que supomos, até gostaria de ser, mas não conseguia, e quando escrevia deixava transparecer essa sua impotência fundamental, tentando transformá-la, pela escrita, em uma (nova) forma de poder. 
E eis que mencionamos uma palavra-chave, a palavra-título do texto mais conhecido de nosso autor: Transformação (“Metamorfose” – Verwandlung). Na verdade, na palavra original, não há referência à “forma”, como há em “metamorfose”, que deriva de “morphé”, “forma”, em grego, significando, portanto, justamente, “trans (metá) – formação (morphoseon)”. A tradução mais próxima da palavra original, “Verwandlung”, seria “transmigração”, pois “wandeln” é “migrar”. E esse é um tema recorrente em Kafka, o da emigração, abordado da maneira mais explícita em seu primeiro romance (?), “América”, mas também em textos centrais, como o “Diante da Lei” (Vor dem Gesetz), publicado autonomamente, mas que é colocado como uma explicação para “O Processo”, dentro deste que é talvez o mais conhecido dos romances de Kafka. E é nesse último texto que entendemos encontrar uma chave de explicação para a própria literatura de Kafka como um todo. Lá, um homem do campo emigra em busca de “entrar na Lei” - em busca de sentido, portanto – e esbarra diante da porta de entrada, inibido pela presença lá do que entende ser um guardião, a quem deveria solicitar a entrada “na Lei”, na luz (que brota da porta entreaberta). Trata-se de uma parábola e é essa a forma privilegiada de expressão de Kafka, ainda que empregada em sentido oposto ao que costuma ser empregada, que é o de transmitir uma “mensagem”, pois em Kafka a parábola expressa a impossibilidade de captarmos o sentido da mensagem, como fica bem evidenciado em textos seus em que fala de parábolas que misturam a ficção com a realidade (Von den Gleichnissen) e de mensagens que nunca chegam a seu destinatário (Eine kaiserliche Botschaft). Ora, ao final da “parábola” que foi contada a Joseph K., por um capelão, para explicar porque estava sendo processado sem saber a acusação, ficamos sabendo que aquela era a porta de entrada exclusiva do emigrante na Lei, o que nos permite supor ter ele se equivocado ao solicitar, formal e burocraticamente, sua entrada no lugar para onde pretendia emigrar, transmigrar, ficando, por assim dizer, a meio-caminho...
Essa é a condição em que nos encontramos, de estranhos na própria casa, exilados na própria terra, expropriados da própria vida, alienados do próprio corpo, representada com toda clareza em “A Metamorfose”. Esse caráter “desterritorializado” da literatura de Kafka foi destacado pelo filósofo Gilles Deleuze, no livro que sobre ele escreveu, em parceria com o psicólogo Felix Guattari, no qual a classifica como uma literatura “minoritária”, enquanto produzida por alguém que pertence a um grupo minoritário, o qual não pertence, propriamente, ao corpo social maior no qual se encontra instalado. Daí o recurso quase judicial a uma escrita que postule uma admissão, pelo emprego da linguagem na forma escrita, o que a torna sempre, necessariamente, politizada, mesmo quando expressa, como é o caso do texto de Kafka, uma nostalgia por uma época mítica, pré-histórica, em que todos sabiam como se portar, sem que precisassem ser a isso constrangidos, por determinações legais, expressas em disposições escritas, que também se as houvessem não seriam mesmo sequer entendidas...
Tanto o escritor Vladmir Nabokov como o mitólogo Roberto Calasso,[4] ao se referirem a esse texto, destacam a presença ali de portas, uma para cada membro da família, que se fecham dentro da própria casa, e que entreaberta deixa ver por entre a fresta uma luz redentora, que vem da sala de estar, onde soa também uma música que em um estado transformado, transfigurado se pode apreciar como antes não se podia e nem se pode, no estado normal.
Quanto à classificação do texto como uma novela, se deve mais à suas proporções, pois se trata de uma narrativa como outras tantas daquelas curtas que nosso A. escreveu, mas que “cresceu”, “transformou-se”, não chegando ao ponto de se tornar tão grande como um romance, sendo que mesmo aqueles que se diz teria Kafka escrito não têm a natureza propriamente romanesca, se considerarmos que em obras assim somos informados de maneira mais acurada e completa sobre as circunstâncias envolvendo a narrativa e seus personagens, de molde a fornecer um quadro explicativo que, nas obras de Kafka, justamente, é que nos falta, como na própria vida, especialmente aquela desenraizada que levamos, ali onde a vida moderna é mais intensa, ou seja, nas grandes cidades.
É essa proximidade com a vida em seu fluxo normal descontínuo e enigmático, mesmo se banal, que aproxima o texto de Kafka daqueles que se produz contemporaneamente para o teatro. Daí em um seu famoso texto, publicado por ocasião da primeira década de falecimento de Kafka, Walter Benjamin anotar que toda sua obra “representa um código de gestos, cuja significação não é de modo algum evidente, desde o início, para o próprio autor; eles só recebem essa significação depois de inúmeras tentativas e experiências, em contextos múltiplos. O teatro é o lugar dessas experiências”. É que Kafka percebeu o quanto padecíamos da alienação do próprio corpo, por força das idéias, em que tendemos cada vez mais a nos tornarmos, deixando de ser reais, animais. O retrocesso à animalidade, apresentado no texto ora em exame, na verdade mostra-se como uma estratégia de recuperação da sensibilidade, diante das condições de vida brutais, brutalizantes, tal como são aquelas da vida em sociedade, especialmente ali onde ela se torna mais social, no sentido originário, jurídico, do termo, que remete a uma vinculação contratual, a qual se escolhe fazer e se faz sem maiores considerações do que aquelas resultantes de um cálculo de vantagens, sobretudo da expressão econômica, financeira, do negócio. É a negação dessa negação do ócio contra o que reage, corporalmente, a personagem da “metamorfose”.
            Outro aspecto fundamental a ser destacado está relacionado ao que se pode denominar de “consciência corporal”. Kafka percebeu muito bem nosso descolamento do próprio corpo. Daí haver tanto em sua obra animais em integração com os humanos, ou humanos transformando-se em animais – e vice-versa.          Isso implica uma recuperação daquela dimensão que foi esquecida, por influência da dominação política que se abateu sobre a Grécia e todo o mundo então conhecido - ou melhor, já em contato -, oriunda de Roma, reforçada posteriormente pela religião monoteísta, ainda mais repressiva, que se aliou ao império romano sob o qual padecera o seu fundador. Trata-se da dimensão corpórea da vida, que á a dimensão originária, pois é no corpo que se enraíza a consciência produtora dos pensamentos que formam a filosofia, assim como o que chamamos de “eu”.
Uma das causas do fascínio atual pelo corpo é essa maleabilidade do eu. O corpo não é mais um destino, mas um acessório que pode ser modificado de acordo com o momento. Para muitos o corpo é uma representação provisória, um lugar ideal para testar coisas diversas sobre e para si. A personalidade é transformada em um kit, que tem o corpo como a peça principal da afirmação pessoal. Como afirma Le Breton,[5] o corpo é apenas o suporte para compor uma identidade que é momentânea. Como não é possível modificar as condições existenciais, altera-se o corpo de muitas maneiras. O corpo passa a ser uma prótese para um sujeito que vive eternamente à procura de um traço significativo de sua personalidade. Nesses termos, mudar o corpo significa mudar a vida. O que se pretende, ao aproximar a filosofia e o teatro, por meio da literatura de Kafka, é justamente uma inversão desse processo, trabalhando no sentido da mudança das condições existenciais por meio de sua melhor compreensão, graças a uma experiência coletiva de encenação.
O modelo do homem metamorfoseado, antevisto por Kafka, oferece uma alternativa de identidade para o sujeito que pode ser avaliada positivamente. As transformações corporais nesse caso não visam a uma forma única e ideal. É uma espécie de exercício de si, encaixe e desencaixe de peças diversas que possam trazer satisfação em dado momento. O problema desse modelo é se ele for levado ao extremo. Acreditar que é possível aparelhar o corpo de forma a não adoecer, não envelhecer ou não morrer é uma quimera, pelo menos para um futuro próximo. Por outro lado, as possibilidades de invenção de sujeito em relação ao corpo são restritas, pois esse é um referente concreto que tem alternativas limitadas de ação. Portanto, há contornos que não podem ser ultrapassados em relação ao corpo, e eles não devem ser ignorados.
            Há de se recordar, assim, a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante a vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte. O incremento da violência na sociedade “pós-moderna” não poderá ser contida pelo reforço da proibição jurídica, mas antes por uma consideração das conseqüências psicológicas e sociais da secularização defendida pela ideologia oficial, donde se verificar uma re-sacralização crescente das relações fora das instituições religiosas, ou seja, em seitas ou “tribos” (Maffesoli).[6] Seja como for, fica registrada a origem violenta de toda proibição, tanto sagrada, como jurídica, que garante nossa vida em sociedade, sustentada pelo enfrentamento da morte, ou, na fórmula consagrada por Roger Caillois,[7] condição da vida e porta para a morte.
                Em épocas passadas, a comunidade se mantinha íntegra pela referência a uma origem comum, sacramentada por mitologias, religiões ou mesmo, mais recentemente, por mundividências filosóficas. No presente, o predomínio do pensamento científico e o correlato processo de “desencantamento” do mundo, ao qual se refere Max Weber, minam as bases sobre as quais tradicionalmente se ergueram as diversas ordens normativas. A construção de novas bases pressupõe uma recuperação de nossa capacidade criativa de ficções justificadoras da existência e da co-existência, ao mesmo tempo em que estejamos cientes do caráter ficcional desse empreendimento, cujo resultado é a afirmação de valores. Para isso, vamos precisar de uma aproximação entre as mais diversas formas de criações desenvolvidas pelo engenho humano, entendidas assim como diferentes formas poéticas, a saber, para além da literatura propriamente dita, as artes, mitologias, religiões, filosofias e mesmo as ciências, bem como aquela dentre elas que nos sanciona mais severamente, do ponto de vista social, a conduta, a saber, o direito. Caberá ao direito, num tal contexto, solidificar essa invenção ou ficção coletiva, criando e estabelecendo valores, impondo-os mesmo, em busca de garantir as condições de manutenção da vida em comum, a vida humana. Que, ao invés, ela pode ser ameaçada por uma compreensão distorcida do que seja o poder de fazer e implementar o direito é o que ilustra de maneira exemplar, há dois milênios e meio, a tragédia Antígona, de Sófocles.
III
Esse ser o mais assombroso dentre todos os assombros, que somos o humanos, como refere a famosa ode no início de Antígona, procura impor-se a tudo e a todos, pela associação política de muitos, só encontrando na morte um limite à sua ânsia de perdurar a qualquer custo. É ao enfrentamento desse limite que Antígona vai ser levada, por um vínculo de amor que dá sentido poético à vida, e torna sem sentido a oposição política entre os aliados e os adversários, que seu opositor, Creonte, queria levar ao ponto de desonrar o cadáver do inimigo, cuja morte ainda seria insuficiente, para saciar uma sede tamanha de vingança, movida pelo ódio interminável. Bem diversa era a sede de Antígona, a sede de justiça, movida pelo amor, pois como ela diz em uma de suas mais belas e últimas falas, ela nasceu só para amar e ser amada, mas não teve essa sua destinação realizada, por ter sido pelo ódio que se definiu o destino dos que amou e que a amaram. A escalada de violência com a intensidade que só os humanos são capazes de praticar só cessa quando os envolvidos se valem daquilo que desde os antigos gregos foi considerado como sendo o que nos distingue de outros “animais”, enquanto “políticos”: o logos, ou melhor, o diálogo, pelo qual se pode realizar a justiça, que em situações de intenso conflito, se não for poética, afetiva, amorosa, termina tragicamente.
A associação política de muitos de nós é o que nos permite adquirir a potência para atingir nossos objetivos, sendo para a constituição e defesa dessa associação que os responsáveis por ela, como Creonte, na peça de Sófocles, definem os aliados e os adversários, para quem desonrar o cadáver do inimigo, ainda seria insuficiente, para saciar uma sede tamanha de vingança, movida pelo ódio interminável. Bem diversa era a sede de Antígona, a sede de justiça, movida pelo amor, pois como ela diz em uma de suas mais belas e últimas falas, ela nasceu só para amar e ser amada, mas não teve essa sua destinação realizada, por ter sido pelo ódio que se definiu o destino dos que amou e que a amaram. A escalada de violência com a intensidade que só os humanos são capazes de praticar só cessa quando os envolvidos se valem daquilo que entre os antigos gregos foi considerado como sendo o que nos distingue de outros “animais”, enquanto “políticos”: o logos, ou melhor, o diálogo.
Em seguida, para encerrar essa aproximação poético-literária ao direito, desenvolveremos reflexões sobre ele entremeadas (e inspiradas) pela referência de passagens desse texto maravilhoso, o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade, divulgado em 1928 – e assim, espera-se reafirmar o vínculo tão insistentemente ressaltado, entre nós, por Miguel Reale, entre o direito e a (nossa) cultura.
IV
A primeira dessas passagens, logo no início do Manifesto, indica (e denuncia) que “Vivemos através de um direito sonâmbulo”. Fazemos e deixamos de fazer o que se encontra estabelecido pelo direito, por o que se considera ser o direito, sem saber por quê. Aqui, por outro lado, podemos ver uma valorização do (tradicionalmente desprezado) elemento imaginário, produto do desejo, assim na composição ontológica do direito, no seu ser mesmo, como também naquela, epistêmica, gnosiológica, do modo como conhecemos e interpretamos, tanto ao direito como pelo direito, a si, à vida e a tudo o mais. O que faria falta, então, é de buscar uma compreensão do ser que somos, enquanto humanos, em sua correlação com o direito, para assim atingir, por outro lado, uma compreensão fundamental, essencial, também do direito, tendo em vista a necessidade que verificamos de fortalecer um tal entendimento, na atualidade, pelo grau de incerteza e complexidade atingidos pelas formas jurídicas de associação humana. Daí que se precisa buscar, por meio de uma regressão simplificadora, a origem produtora das alterações trazidas ao mundo por esse modo de ser tão peculiar que é o nosso, o humano E isso na expectativa de assim atingir uma melhor compreensão de tudo quanto nos diga respeito mais proximamente, como é o caso do direito, um espectro que assombra todos os nossos relacionamentos com os outros e o próprio mundo, sempre podendo se apresentar para causar transtornos, como o pai de Hamlet, na famosa tragédia de Shakespeare. “Tínhamos a justiça codificação da vingança”.
O Manifesto Antropofágico reivindica o direito ao reconhecimento da legitimidade de modo de viver ancestral, nas Américas, nossa sensibilidade visceral, corpórea, que levava, literalmente, à incorporação do diferente, desde que se mostrasse digno de encontrar no que nos é mais próprio, o próprio corpo, sua tumba, para em nós e conosco superar os limites entre a vida e a morte. “E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais”, como consta de uma passagem do Manifesto. É o tempo mítico, conceituado por Lévi-Strauss, em sua "Antropologia Estrutural", como abrangente do passado, presente e futuro. Pois justamente é nesse passado, ainda presente, em nós, posto que somos tempo encarnado, em que encontraremos a melhor orientação para o que buscar no futuro, o sentido a dar a nossas vidas, nossas ações, portanto, nossa política e nosso direito, “Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem”.
            Em “Totem e Tabu”, referido explicitamente nessa passagem do Manifesto, Freud imagina a origem do humano numa adoração do Pai, morto e comido em um banquete antropofágico, para assim ser idolatrado pelos filhos que o mataram, movidos pelo que no Manifesto se chama de “Lei do homem. Lei do antropófago: Só me interessa o que não é meu”. E eis que os primeiros humanos, filhos e viúvas do pai primevo,  se viram "expulsos do paraíso", mas se por um lado perderam a proteção de um macho mais forte, viram-se também livres de sua tirania, e na versão oswaldiana (influenciado, como Nietzsche, pela obra “Direito Materno”, Muterrecht, de Bachofen) foi aí que souberam fundar o paraíso sobre a Terra, no regime de matriarcado. Uma outra coisa, portanto, é o que aparece articulada no livro do Gênesis, no mito do paraíso perdido, onde a transgressão da Lei de Deus-Pai, Todo-Poderoso, seria a condição para que o primeiro homem e a primeira mulher conheçam o sexo, imediatamente reprimindo com as vestes que lhe são impostas, ao perceberem que estão nus; conheçam a morte, tornando-se mortais; conheçam a limitação à sua possibilidade de conhecer, por não poderem conhecer a Deus ou à realidade única, numênica (devo a compreensão disso a conversa no dia 16/12/2007, no Rio de Janeiro, com o saudoso amigo Luis Alberto Warat, o autor de obras como “Manifesto do Surrealismo Jurídico” e sua última publicada em vida, “A rua grita Dioniso”); e conheçam as leis, que lhes permitirá estabelecer a diferença entre o bem e o mal. Portanto, graças ao desejo de transgredir a ordem divina, dada para que eles conhecessem o desejo, é que se tornaram sujeitos, separados de Deus e, ao mesmo tempo, mais próximos d'Ele, e de ser como Ele. Contra tudo isso Oswald brada: “O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. (...) Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida (...) O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores”.
O direito é, portanto, parte desse universo ludicamente concebido como integrado por outras manifestações anímicas, espirituais, sobre as quais se desenvolvem os mitos, religiões, artes, a cultura de um modo geral, tudo criação do desejo humano, modos de imaginar o real em descrições que façam sentido, como diria o antropólogo Cliford Geertz. Ora, em um mundo concebido (nietzscheanamente) como sonho (de deidades que são o aspecto subjetivo do cosmo, entendido como uma diacosmese, uma epifania dessas diversas divindades em que cada uma a seu modo, de múltiplas formas, expressa o cosmo em sua totalidade, como nos explica em sua “Mitologia” o grande sábio luso-brasileiro Eudoro de Sousa) pode acontecer muito mais e com maior facilidade do que na realidade fixada por nossos hábitos, pois ele não só varia muito mais no tempo e no espaço reais, como também dispõe de um tempo e espaço próprios, a ponto de se poder vir a realizar uma cosmologia, filosófica, totalmente diversa daquela astronômica, que é como se pode conceber, por exemplo, os esforços da psicanálise. É certo que nisso que o direito, assim como a ficção e a filosofia, e com anterioridade, o mito, seja na magia, seja na religião, demonstram-se “constituinte de mundo” (isto é, weltbildend, como diriam os filósofos fenomenólogos germânicos). Esta é a posição do grande filósofo brasileiro, paulista, que perdemos prematuramente, Vicente Ferreira da Silva, expresso em textos como “Para uma etnogonia filosófica” e Filosofia da Mitologia e da Religião.  Mas se não é propriamente ficcional o modo de existência originário do mundo, a ser captado pela filosofia, e vazado nos moldes cunhados pelo direito, qual seria o seu estatuto? A proposta aqui avançada é a de que ele é da ordem do desejo, considerando-se a expressão como formulada utilizando o genitivo em sentido subjectivus e também objectivus, ou seja, como sendo o mundo ao mesmo tempo causa e efeito, ou função, do desejo, do que é mais propriamente humano, e não da vontade ou de necessidades, que geram interesses, como defende o utilitarismo tecnicista hoje predominante. Qual o desejo de direito e de vida que temos? Para Oswald, teria de ser o de felicidade, segundo a frase duas vezes escrita no seu manifesto, de que “A alegria é a prova dos nove”. Daí porque “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”.
Ao considerarmos o mundo, tal como o concebemos, representamos, imaginamos, como um produto do desejo, lhe conferimos o mesmo estatuto dos sonhos, isto é, um caráter onírico. Aqui cabe suscitar a contribuição que pode ser dada pela “poética dos sonhos (rêverie)” de Bachelard, para quem “Um mundo se forma em nossos sonhos, um mundo que é nosso mundo. E esse mundo sonhado nos ensina possibilidades de crescimento de nosso ser nesse universo que é nosso”. Essa é também a poética modernista proposta para as artes, já pelo menos desde Baudelaire e, mais radicalmente, por Apollinaire e os surrealistas, isto é, a que se engaja na produção de um mundo que revele possibilidades desapercebidas do real. Não por acaso Bachelard será reivindicado pelo “pai” do Surrealismo, André Breton, que se insere nessa tradição, como ele próprio reconhece. E Gilbert Durand, com seus estudos sobre o imaginário, irá se colocar nessa linha, junto ao “surrealismo contemporâneo”, bem como dos “grandes românticos alemães” (Novalis, Hölderlin etc.), pela superação do que Piaget denominou de “adultocentrismo”, para assim recuperar a matriz metafórica, imaginária, de onde emana toda atividade mental humana, inclusive aquela mais redutora, a que aqui denominamos racionalizadora, dita racional.
Tratar-se-ia, então, de ver o direito como dando sustentação a algo como um sonho coletivo, construído a partir do que já é dado como sendo o mundo, a realidade, sim, mas sempre in fieri, nunca devendo ser tido como já pronto e acabado, ou seja, objetivo, pois além de depender de sujeitos, desejantes, que o tenha posto, no passado, visando uma previsão e controle do futuro, contingente, depende também de sujeitos que o “re-ponha”, no presente, atualizando o que há de ser visto como potencialidades, realizando possibilidades. Daí a importância de levarmos em conta passagens do manifesto como a que se põem “Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada.” E também a que fornece a definição primorosa de direito, em sua ingenuidade, da boutade, ou galimatia, da seguinte forma: “Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o”.
Na base de toda essa ilusão (ou ficção) coletiva que é a sociedade, cimentada por normas da ética, do direito e das religiões, está a ilusão individual de que somos um ser, fixo, acobertando com isso o vazio que realmente somos, por não sermos propriamente. A primeira tentativa que fazemos para colmatar esse vazio, essa falta de ser, quando se ausenta “aquilo” – o objeto “a” de Lacan - que julgávamos ser (por exemplo, nossa mãe, “onde” “éramos” antes de nascer), nos leva a falar. Adquirindo a linguagem, nos vem a ilusão fundamental: a do Eu. Depois, por modos diferentes, diante do fracasso repetido de atingir “(a)lgo” que preencha-nos o vazio de ser, terminamos nos fixando mais em alguma prática, como a religião, a arte ou a ciência. Com a arte, ornamentamos o vazio, disfarçando o horror que nos causa; com a religião, nós o evitamos, ao venerá-lo; com a ciência, nós o negamos, negando, assim, a nós mesmos, do que resulta essa espécie tão eficaz de sociedade em sua capacidade destruidora que é a nossa.  Ou, nos termos do manifesto: “É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos”.
Assim, entendo ser preciso nos voltarmos para a arte em alguma de suas mais diversas formas, onde se inclui a arte da política e mesmo a religião – uma forma de religião artística, criativa, prazeirosa, festiva, carnavalesca, dionisíaca, à qual Oswald de Andrade, em sua tese "A Marcha das Utopias", qualificava como “órfica”, em tudo diversa daquelas religiões cultuais, repressoras e subordinadoras -, para daí fazermos o fundamento do mundo em que vivemos e que vive conosco: do contrário, não haverá salvação possível para ele – e, conseqüentemente, para nós também.  “É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus”, diz o Manifesto. Daí a importância das manifestações religiosas e ritualísticas, as mais diversas, sobretudo as que escapem do monoteísmo, como é o teatro, oriundo dos rituais dionisíacos, para nos revelar o sagrado na vida, que é o segredo da vida.
Nesse momento em que se levantam protestos em todos os cantos do globo, reivindicando direitos, vale lembrar, para concluir, a seguinte passagem, atualíssima, do Manifesto: “A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América.” Sim, porque a defesa dos direitos dos indígenas por Bartolomeu de las Casas e nosso Pe. Antônio Vieira foi fundamental para difundir a idéia da universalidade dos direitos, de uma humanidade também universal, assim como o modo comunitário, comunista, como viviam (e ainda vivem, a muito custo) os habitantes das Américas, além de inspirar na Europa idéias como a do estado de natureza, mostrou a possibilidade de se estabelecer uma convivência social pacífica e harmônica, sem coação, como se pretende pelo direito, mas com o exercício da violência -  dita coação, por ser autorizada, validada, juridicamente -, o que é uma grande contradição, a ser resolvida, nem que seja pelo seu acirramento, nesse modo de organização política e econômica em permanente crise que se tornou mundial, o capitalismo.





[1] A Cabala e seu Simbolismo, São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 20, passim.
[2] “E se ao invés fôssemos um índio, sempre pronto, montado no cavalo galopante, curvado no vento, sempre tremendo um pouco sobre o tremor do solo, até que deixássemos as esporas, pois não haviam esporas, até jogarmos fora os arreios, pois não haviam arreios, e quase não víssemos mais a pradaria diante de nós, com o capim cortado bem rente, já sem o pescoço do cavalo e sem a cabeça do cavalo”.
[3] Cf. Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível, São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 144.
[4] K., São Paulo: Cia. Das Letras, 2006, p. 146 ss.
[5] Conduites à Risque.Paris: Presses Universitaires de France, 2002.
[6] Cf. G. Balandier, “Antropologia e crítica da modernidade”, in: id., Antropo-lógicas, São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1976, p. 258 s.; G. Marramao, Poder e Secularização, São Paulo: EDUNESP, 1995.
[7] Cf. El Hombre y lo Sagrado, 2ª ed., México: Fondo de Cultura Económica, 1996 [1939]: cap. V, p. 147 ss.

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